O projeto Sociedade Dividida chegou ao Kosovo. Região instável pertencente `a Sérvia e que declarou, unilateralmente, sua independência em 2008. Embora tenha sido reconhecido por mais de 100 países da ONU, alguns membros importantes da organização estão de fora dessa lista. Entre eles Rússia, aliada histórica da Sérvia, Espanha, membro da Otan, mas que enfrenta problemas de regiões separatistas em seu território, e o Brasil, que tende a respeitar a soberania dos estados.

Abaixo, segue um trecho de um artigo que escrevi sobre o território:
No século XX, medo, insegurança e desconfiança no espaço de terra de maioria albanesa, o Kosovo, foram os principais fatores responsáveis pelos conflitos que definiram as atuais (mas não reconhecida por todos) fronteiras da região.
“A fronteira oriental da Sérvia foi elaborada a partir do cume do Patarika, na antiga fronteira, e seguiu o divisor de águas entre os rios Vardar e Struma para a fronteira greco-búlgara, exceto que o vale superior do Strumnitza permaneceu na posse da Bulgária. O território assim obtido abraçou a Macedônia central, incluindo Ochrida, Monastir, Kosovo, Istib e Kotchana, e a metade oriental do sanjak de Novi-Bazar . Por este arranjo a Sérvia aumentou seu território de 18.650 para 33.891 milhas quadradas e sua população para mais de 1,5 milhões”.

No início do século passado, mais precisamente em 1913, logo após as Guerras Balcânicas, o Tratado de Londres redefiniu as fronteiras da região. Foi quando a Sérvia anexou a região do Kosovo. No ano seguinte, em Sarajevo, inicia-se a Primeira Guerra Mundial. Logo após o conflito nasce o Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, que originou a criação da Iugoslávia (povos eslavos do sul) no final da década de 20. Durante a Segunda Guerra Mundial o território Iugoslavo se fragmentou novamente. Foi criado um estado croata fascista (Utasha) e o Kosovo foi dividido entre Bulgária, Sérvia (ocupada pela Alemanha de Hitler) e Albânia. Após o fim da guerra ficou decidido durante comitês de negociação que o Kosovo faria parte da Sérvia, uma das repúblicas da Iugoslávia. O líder albanês Enver Hoxha não questionou a união de Kosovo ao território Iugoslavo, o que fez ainda aumentar o fluxo de albaneses para a região. Mas o acordo com o líder iugoslavo Josep Tito acabou em 1948, quando este rompeu as relações com a União Soviética. Daí pra frente, Kosovo foi ficando pra trás em relação às outras regiões sérvias quando se fala em desenvolvimento e sua população albanesa questionava o status de república dado a Montenegro (com população bem inferior), por exemplo, enquanto Kosovo seguia apenas como uma parte da Sérvia. Houve uma série de manifestações que apoiavam a criação da República do Kosovo, o que sempre foi impedido por Tito por receio de uma anexação da região à Albânia. Com a morte do líder, a desintegração da nação era iminente e o primeiro passo para a separação foi dado em abril de 1987, justamente no Kosovo.
Naquele ano, Slobodan Milosevic, líder nacionalista sérvio, foi enviado ao Kosovo para mediar um conflito entre os sérvios e albaneses (que eram maioria). Milosevic aceita dialogar com os sérvios. Do lado de fora da reunião, um confronto entre sérvios e a polícia, de maioria albanesa, levou Milosevic a tomar partido dos sérvios e, em entrevista à TV, diz: “Não voltarão a bater-lhes de novo”. A partir daí é criado um ambiente de hostilidade, ainda mais aguçado pelas reportagens da TV sérvia e após o Massacre de Saracin, quando um soldado albanês abre fogo contra colegas sérvios e depois se suicida. Com o passar dos meses Milosevic começa a bater de frente com o então presidente sérvio Ivan Stambolic, que acaba renunciando ao cargo após perder o apoio do partido. Milosevic consegue o domínio político de Montenegro, região satélite sérvia, de Vojvodina e de Kosovo, após a queda de Azem Vllasi, líder albanês, que é acusado por Milosevic de rebelião contra ele após uma greve geral dos albaneses em fevereiro de 1989. Com o controle de Kosovo Milosevic conseguiu acabar com a autonomia kosovar. Em maio daquele ano ele se tornou presidente da Sérvia. Apesar da vitória, ele criou insatisfação e desconfiança nas outras repúblicas.
A partir daí começaram as guerras de independência: Eslovênia, Croácia e Bósnia. Com os anos conturbados do conflito na Bósnia, o mais sangrento deles, as atenções internacionais ficaram todas voltadas para lá – e em determinado momento para o conflito em Ruanda (1994) -, a província do Kosovo entrou em uma crise ainda maior. A possibilidade da independência fez com que Milosevic intervisse na região e perseguisse a população de origem albanesa, com violações de Direitos Humanos. Por outro lado, Kosovo usava muitas vezes do terrorismo, enquanto a Sérvia respondia com mais forças de ocupação na província. O Conselho de Segurança foi então chamado para que se chegasse a uma solução, o que foi vetado por parte da Rússia. Mas mesmo assim, sem autorização, a OTAN interveio militarmente na região. As ações, primeiramente apoiadas pela opinião pública internacional, logo foram questionadas pela mídia e, entre diversos comunicados de entidades internacionais, um relatório da Human Rights Watch (HRW) aponta que, “no que diz respeito `a violações da Otan do direito internacional humanitário em Kosovo, a HRW estava preocupada com um número de casos em que as forças da OTAN:
– foram tomadas precauções insuficientes para identificar a presença de civis ao atacar comboios e outros alvos móveis;
– foram tomadas medidas insuficientes para verificar se alvos militares não têm concentrações de civis, acarretando em excessivas baixas de civis.”
Embora a guerra do Kosovo tenha encerrado oficialmente em 1999, até 2005 foram registrados conflitos na região. Pelo menos 5 mil pessoas morreram.
Hoje, ao visitar o “estado independente”, é possível ver que uma anexação `a Albânia é questão de tempo. A população é majoritariamente composta por albaneses, o idioma é albanês e desde a fronteira até Prizren, a primeira cidade visitada, bandeiras da Albânia aparecem mais de uma vez por quilômetro percorrido.

Referências:
Evans, Gareth. The Responsibility to Protect: ending mass atrocity once and for all. Brookings, Washington, 2008.
Annan, Kofi: Two Concepts of Sovereignty. The Economist, Londres, 18 de setembro de 1999. Disponível em http://www.economist.com/node/324795
Relatório da prefeitura de Belgrado sobre os ataques durante a Guerra do Kosovo: http://www.beograd.rs/cms/view.php?id=201271
Brzezinski, Zbigniew. A Plan for Europe: How to Expand NATO. Foreign Affairs, 2015. Disponível em https://www.foreignaffairs.com/articles/poland/1995-01-01/plan-europe-how-expand-nato
Colakovich, Anesa. Humanitarian or Military Intervention. Disponível em: file:///Users/raphaellima/Downloads/[Colakovich]%20Military%20or%20Humanitarian%20Intervention.pdf
Lukic, Reneo. The Withering Away of the Federal Republic of Yugoslavia. Disponível em http://www.nato.int/acad/fellow/99-01/lukic.pdf
Power, Samantha. Genocídio, a retórica americana em questão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
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Trifunovska, Snežana. Yugoslavia Through Documents: From Its Creation to Its Dissolution. Martinus Nijhoff Publishers, 1994.
França, Paulo Roberto Caminha de Castilhos. A Guerra do Kosovo, a Otan e o conceito de “Intervenção Humanitária”. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.