“Levei as crianças para casa e disse para minha mulher que iríamos ser bombardeados”: 20 anos dos ataques da Otan ao território iugoslavo

Os ataques da Otan no território sérvio e montenegrino completam, neste dia 24 de março, 20 anos. Há exatos dois anos, cheguei em Belgrado para iniciar a viagem para o livro ‘Sociedade Dividida – Iugoslávia’.

Abaixo, divulgo o trecho do livro em que entrevisto Vujadin Vujadinovic, montenegrino que estava na capital Podgorica no momento em que as bombas começaram a cair.

Vujadin Vujadinovic (Raphael Lima)

Podgorica, Montenego / Dia 12 – 4 de abril de 2017

Entrei no ônibus oito e meia da manhã e antes de meio dia estava na capital. Diferentemente do litoral, Podgorica não tem beleza. É uma cidade cinza, com blocos no melhor estilo comunista e ligeiramente abandonada. Escolhi um hospedagem ao lado da estação porque havia apenas um ônibus para o Kosovo, local para onde iria dali e este saía sete da manhã. Logo quando cheguei percebi que iria embora no dia seguinte. As oportunidades de fotos eram poucas e a realidade foi bem menos interessante que a expectativa. Mas a sorte estava do meu lado. Um dos entrevistados previstos, que não estaria disponível para falar comigo naquele dia, estava em casa por algum motivo que não entendi ao telefone e, coincidentemente, seu apartamento ficava exatamente em frente ao meu hostel, do outro lado da linha do trem. Como não havia grade, consegui cruzá-la a pé e em menos de dez minutos estava lá, um prédio que começou a ser construído na década de 90 e por conta dos imprevistos das guerras nunca foi inteiramente finalizado. Acabaram por apelidá-lo de Vukovar, a cidade croata onde quase todas as construções ficaram destruídas com a guerra. Vujadin Vujadinovic me esperava na porta. Ele era ferrenho defensor do regime de Tito e estava em Podgorica quando a cidade foi bombardeada pela Otan em 1999.

“Foda-se a Otan, te amo”

“Eu me lembro de ter ido buscar as meninas na aula de dança. Estava na sala de espera, vendo TV. De repente, ouvi o apresentador: ‘Aviões da Otan estão a caminho da Iuguslávia para bombardeá-la’. Eu fiquei em choque. Não podia acreditar. Olhei em volta e ninguém reagia. Levei as crianças para casa e disse para minha mulher que iríamos ser bombardeados. Ela disse: ‘Não brinque, o que você está dizendo?’. ‘Acabou de passar na TV’, respondi. Olhei pela janela. Vi luzes no céu. Pensei que eram os aviões. Mas na verdade já eram mísseis. Ele vinham da direção de Petrovac. E em 15 segundos…boom. As explosões começaram. Eram na região do aeroporto. Depois, durante a noite, bombas caíram em Danilovgrad. Mataram dois soldados. Depois foram hospitais, pontes. Eles mataram crianças que estavam em uma ponte como se fossem animais. A Otan matou nossos homens, nossos meninos, nossas crianças. Destruiu nossos hospitais, nossas fábricas. Para? Para seu próprio interesse. Não atacamos ninguém. Eles inventaram o tamanho do problema no Kosovo, que poderia ter sido resolvido internamente. E tudo poderia ter sido sem bombardeios. Assim como na Bósnia, assim como no Vietnã, assim como no Afeganistão, assim como na Síria. Sobre Montenegro entrar na Otan? É o interesse de um pequeno grupo de pessoas”.

Vujadinovic ainda relembrou a liderança de Tito, a quem chamava de “visionário, que unia as pessoas”.

“Era o grande líder de seu tempo. Criou uma nação”.

Biografia de Tito exposta na sala de Vujadinovic

Após mais algumas horas de conversa, voltei a pé para o hostel. Falamos sobre futebol. Apesar do campeonato montenegrino, Vujadinovic ainda é torcedor do Partizan Belgrado, rival do Estrela Vermelha. Em uma parede, vimos uma pichação: “Nato = Nazism” (Otan = Nazismo). Ele deu uma risada, como quem diz: “Vox popoli, vox Dei”.

Ainda em 2017, Montenegro anunciou sua entrada na Otan. A aliança do país com a organização, criada após a Segunda Guerra para conter o avanço comunista, foi repudiada pela Rússia, histórica aliada da Sérvia, país vizinho.

Embora a guerra do Kosovo tenha encerrado oficialmente em 1999, até 2005 foram registrados conflitos na região. Pelo menos cinco mil pessoas morreram. Hoje, ao visitar o “estado independente”, é possível ver que uma anexação à Albânia é questão de tempo. A população é majoritariamente composta por albaneses, o idioma é albanês e desde a fronteira até Prizren, a primeira cidade visitada, bandeiras da Albânia aparecem mais de uma vez por quilômetro percorrido.

O humanitário Conor Foley, que trabalhou no Kosovo logo após a guerra, em 1999, relata em seu livro os erros da intervenção da Otan. Em entrevista para o livro, ele explica:

“Não tenho certeza se a intervenção foi um erro, mas foi realizada de forma muito precipitada e os problemas foram ignorados, de modo que as lições não foram aprendidas. Foi retratado como um sucesso, o que certamente não era”. Ele completa: “Após Srebrenica, previa-se o pior. Mas era claro que havia diferenças entre o Kosovo e a Bósnia”.

Ele ainda completa:

“Ninguém pode precisar o número correto de mortes pré-intervenção, mas todo mundo concorda que a grande maioria das mortes aconteceu após o bombardeio da Otan”.

Entre os casos conhecidos de mortes pela Otan estão:

  • 12 de abril de 1999: 30 civis mortos ao sul de Belgrado após um trem ser bombardeado;
  • 14 de abril de 1999: 64 mortos após um comboio de refugiados ser atingido;
  • 23 de abril de 1999: estação de TV foi alvo de um bombardeio. Dez mortos;
  • 10 de maio: uma bomba atinge um hospital matando 15 e a embaixada da China também foi atingida, provocando a morte de três pessoas.
Escritório da Otan em Podgorica (Raphael Lima)

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